A recente seca de grandes proporções que se abateu sobre a Amazônia
ocidental e central tem suscitado várias questões sobre sua possível
relação com o aquecimento global ou mesmo com desmatamentos e queimadas
locais. A imprensa mostrou leitos de rios quase secos, expondo imensas
áreas de várzea. A intensidade da seca – medida pelo nível do rio Negro
no Porto de Manaus – foi sem paralelo e atingiu o menor valor da série
histórica que teve início em 1902, época da inauguração deste
porto. O rio próximo a Manaus chegou a um nível tão baixo que expôs pela
primeira vez hieróglifos que podem ter sido feitos de 5 a 6 mil anos
atrás por civilizações antigas da Amazônia. Mas há alguma coisa de
anormal nas secas da Amazônia?
A Amazônia apresenta números exuberantes como sistema natural: abriga
até 15% da biodiversidade do planeta; despeja no Oceano Atlântico
aproximadamente 18% do fluxo de água doce de todos os rios do mundo;
armazena entre 100 e 120 bilhões de toneladas de carbono na sua
biomassa, funcionando como grande reservatório de carbono; o mecanismo
de produção de suas chuvas constitui-se numa grande fonte de calor para
as circulações atmosféricas, com impactos para todo o planeta.
As variações climáticas interanuais das chuvas da Amazônia fazem parte
da variabilidade natural do clima tropical da América do Sul e os
ecossistemas normalmente estão adaptados a elas. O que chama a atenção é
que, num curto intervalo de seis anos, do início da seca em 2005,
observamos a mais drástica seca, em 2010, e a terceira maior seca no rio
Amazonas em 2005 – a segunda maior seca ocorreu em 1963 –, e ainda
tivemos a maior enchente do mesmo rio em 2009. Em poucos anos, portanto,
vários recordes climáticos foram ultrapassados. O que poderia estar
acontecendo? Não temos uma explicação completa sobre o porquê de tantas
cheias e secas na bacia amazônica em tão pouco espaço de
tempo. Isso gerou, claro, enorme interesse científico nacional e
internacional em estudar tais fenômenos, mas é cedo para afirmar quando
teremos explicações completas sobre essas anomalias climáticas, ainda
que vários estudos já estejam prontos para publicação em 2011.
Hipóteses
A causalidade mais imediata, o que fez as chuvas atrasarem, a ciência
pode explicar. A questão é: por que essa coincidência de extremos
climáticos num curtíssimo espaço de tempo? Há 108 anos existem registros
nos níveis do rio Negro, em Manaus e não há nada parecido com o que
observamos nesse período. Uma das possibilidades, não é a única, é: se o
planeta continuar aquecendo da forma como vem acontecendo nas últimas
décadas, em 50 anos esse tipo de extremo climático se tornará uma
variação climática habitual. Portanto, se não conseguirmos reverter o
aquecimento global, essas flutuações exacerbadas podem ser uma amostra
de como será o clima no futuro.
Para falar de secas, é preciso caracterizá-las. Há basicamente dois
tipos de seca na Amazônia: um primeiro tipo, mais comum, são as
causadas, principalmente, por perturbações climáticas que se originam no
Oceano Pacífico associadas com seu aquecimento (fenômeno conhecido como
El Niño). O El Niño causa a seca acentuada no norte e leste da
Amazônia.
Outro tipo de seca, normalmente mais raro, é induzido quando o Oceano
Atlântico Tropical ao norte do Equador está mais quente, o que muda a
circulação atmosférica na Amazônia, diminuindo as chuvas, uma vez que o
transporte de umidade pelos ventos alísios deste oceano para dentro do
continente diminui. Nesse caso, a seca se manifesta mais no oeste e
sudoeste, como foi o caso em 1963, 2005 e, novamente, em 2010. Apesar de
hoje termos um bom entendimento desses dois tipos de seca, o que nós
não temos ainda é a capacidade de prever a longo prazo, por exemplo,
como vai ser o regime de chuvas nos próximos anos ou décadas.
Também é preciso diferenciar secas meteorológicas de secas hidrológicas
em uma bacia de drenagem. O que vimos em 2010 foi a mais drástica seca
hidrológica do registro histórico, que isolou várias comunidades
ribeirinhas, ocasionando um desastre natural que afetou mais de 60 mil
pessoas. Ocorreu uma diminuição das chuvas no oeste-sudoeste da
Amazônia, isto é, o canal principal do Amazonas recebeu fluxos menores
de água dos tributários da margem direita. O déficit de chuva também
atingiu alguns tributários da margem esquerda originários do hemisfério
norte. A combinação dessas duas “ondas de seca” vindas de ambos os
hemisférios resultou na menor vazão registrada no canal principal.
Há relação com o desmatamento?
A análise das secas da Amazônia de 2005 e 2010 indica com relativa
segurança as causas prováveis que devem ser buscadas na circulação
global da atmosfera e na interação da atmosfera com os oceanos
tropicais. Vários estudos realizados colocam as maiores temperaturas da
superfície do mar no Oceano Atlântico Tropical ao norte do Equador como
fator deflagrador das secas. Possivelmente, nesse caso, desmatamentos e
queimadas não podem ser responsabilizados como principais fatores
causadores. Num ano de seca, tipicamente há mais queimadas, lançando
mais aerossóis na atmosfera. Há uma teoria sobre o efeito dessa “fumaça
de queimadas” sobre as chuvas, no sentido de causar o atraso do início
da estação de chuvas. Se isso, de fato, estiver ocorrendo, as queimadas
passariam a ser o fator de intensificação de uma seca iniciada por
outras causas.
Saindo um pouco da várzea do rio Amazonas, vale a pena questionar o
efeito de secas sobre a floresta de terra firme. A floresta tropical
úmida somente existe onde a estação seca é curta, isto é, deve existir
água no solo para manutenção da floresta tropical durante todo o ano.
Como secas intensas têm ocorrido aparentemente com mais frequência, uma
pergunta mais ou menos óbvia é se há um limite de chuva abaixo do qual
não seria possível manter a floresta tropical (mas, antes de responder, é
preciso esclarecer que a floresta resiste galhardamente a uma seca
intensa. A mortalidade de árvores aumenta, mas as coisas voltam ao
normal com o retorno das chuvas regulares). Existe um cálculo para isso:
o grau de impacto de mudanças climáticas na floresta é uma combinação
dos níveis de chuva e do aumento de temperatura. Então, se o aquecimento
global ou o desmatamento na Amazônia causar uma mudança permanente do
clima, em que a soma média da chuva na região diminua em torno de 10% ou
15% e a temperatura aumente quatro graus; as duas coisas ocorrendo,
mais de 50% da Amazônia poderá se tornar propício a outros tipos mais
secos de vegetação. Com isso, ou teremos uma floresta seca ou um tipo de
savana bastante degradada, diferente do cerrado do centro e do sul da
Amazônia, pelo empobrecimento em diversidade biológica. A esse processo,
a literatura científica tem dado o nome de processo de “savanização” da
Amazônia, querendo dizer que mudanças climáticas de origem global (por
exemplo, aquecimento global devido à emissão antropogênica de gases de
efeito estufa) ou local/regional (por exemplo, desmatamentos) tornam o
clima regional mais parecido com aquele das savanas tropicais, com
longos períodos de estiagem.
Uma pergunta muito frequente é saber até que ponto o clima –
principalmente o regime de chuvas de outras partes do Brasil fora da
Amazônia – poderia ser alterado por desmatamentos de grande escala
daquela região. Hoje, não conseguimos estabelecer uma relação clara
entre as chuvas da Amazônia e o clima do restante do país. Há um número
pequeno de estudos que indicam a relação com a chuva de inverno no sul
no Brasil, norte da Argentina e Uruguai. Nesse caso, se não houvesse
floresta, provavelmente a evaporação ocorrendo na Amazônia seria menor
durante a estação seca. As correntes atmosféricas carregam ar que
atravessa a Amazônia para o sul, principalmente para o sudeste da
América do Sul, na região mencionada acima. Hipoteticamente as chuvas de
inverno nesta região poderiam ser afetadas por receber menos vapor
d’água trazido pelos ventos. A floresta é muito importante para o clima
da própria Amazônia. As chuvas seriam menores na Amazônia se não
houvesse a floresta. A influência do clima da Amazônia no resto do país e
no clima do mundo é algo sobre o qual temos algumas ideias
científicas sendo exploradas, mas não há qualquer comprovação forte,
ainda que não se possa descartas mudanças remotas no clima de regiões
distantes se a Amazônia for desmatada.
Concentração de gás carbônico
O aquecimento global e o desmatamento são fatores que afetam
negativamente a resiliência dos ecossistemas da Amazônia. Entretanto, o
gás carbônico pode funcionar no sentido contrário, isto é, aumentando a
resiliência. Lembremos que as concentrações do CO2 estão aumentando na
atmosfera em função das emissões antropogênicas, sendo esse o principal
gás de efeito estufa responsável pelo aquecimento global. O CO2 é um
combustível da fotossíntese. Quanto mais CO2 houver na atmosfera, mais
matéria orgânica as plantas vão produzir, utilizando menos água – até
certo limite. O que nós não sabemos é como um sistema complexo como
uma floresta tropical responde ao aumento do CO2. Sabemos é que uma
floresta com muitas espécies não responde da mesma maneira que uma
planta isoladamente. Vários experimentos foram feitos no hemisfério
norte e mostraram o quanto as florestas de lá acumulam CO2. O valor
acumulado foi de 25% do valor máximo de acúmulo que se poderia esperar
pelo aumento teórico da fotossíntese. Isso porque a floresta é um
sistema complexo que responde a uma série de fatores (por exemplo, água
no solo, limitação de nutrientes, entre outros) e não somente ao CO2.
A grande incerteza em relação à Amazônia é que não sabemos como a
floresta tropical responderá ao aumento de CO2, porque nunca fizemos um
experimento desses. É algo nada trivial fazer tal experimento na
floresta, ou seja, manter um pedaço de floresta tropical com
concentrações elevadas de CO2 por vários anos e, na Amazônia, seria
menos trivial ainda. Portanto, não sabemos precisamente como a floresta
tropical responde ao aumento da quantidade de CO2 na atmosfera, o que
torna mais urgente a necessidade de realizar tal estudo de campo.
Perda da biodiversidade
Reconheçamos que o grande efeito de uma mudança climática na Amazônia é
a possibilidade de perda colossal de diversidade biológica. O impacto
na biodiversidade pode ser direto devido a desmatamentos e queimadas,
ainda que não tenhamos boas estimativas do que pode estar acontecendo,
já que aproximadamente 17% da área da floresta Amazônica já foi
desmatada e ocorrem milhares de incêndios florestais todos os anos,
afetando a resiliência dos ecossistemas. O impacto indireto na
biodiversidade pode dar-se por meio de uma lenta, mas inexorável,
alteração de ecossistemas mais adaptados a climas mais quentes e com
período de estiagem mais longo, tipicamente ecossistemas de savana
tropical, que detém a vantagem adicional de conviver com o fogo, já que a
floresta tropical úmida é praticamente impenetrável pelo fogo.
Os desmatamentos da Amazônia vêm decrescendo significativamente nos
últimos anos, tendo a taxa anual de desmatamento caído 65% em 5 anos na
porção brasileira da Amazônia. Este fato tem colocado o Brasil em
posição de liderança em duas das convenções ambientais internacionais
das Nações Unidas: a convenção sobre mudanças climáticas e a convenção
sobre diversidade biológica. Para a primeira, a redução dos
desmatamentos implica que as emissões brasileiras de gases de efeito
estufa vêm caindo e devemos lembrar que desmatamento de florestas e do
cerrado é a principal fonte de emissões do país. Esta redução dos
desmatamentos foi fundamental para o Brasil ver aprovada a legislação
que estabelece metas de redução de emissões até 2020, lembrando que são
as metas mais ambiciosas de qualquer país em desenvolvimento. Deve-se
também à redução dos desmatamentos a posição de proeminência do país na
recente e bem-sucedida conferência das partes da convenção de
diversidade biológica, em Nagoia, Japão, na qual se chegou a acordos
importantes para a proteção da biodiversidade global.
As possíveis mudanças climáticas na Amazônia podem afetar as grandes
hidrelétricas planejadas para a região. O exemplo de Belo Monte, no rio
Xingu, pode ser tomado como paradigmático pelo lado climático, mesmo sem
levar em conta outros aspectos. A maioria dos cenários de mudanças
climáticas indica a redução das chuvas na bacia do Xingu e o aumento da
sazonalidade destas (estação seca ainda mais seca) durante este século,
isto é, podendo ocorrer ainda durante boa parte da vida útil do
empreendimento. Nesse caso, o potencial de energia firme poderá diminuir
significativamente no futuro, tornando o investimento improdutivo.
Estranhamente, cenários de mudanças climáticas ainda não foram levados
em consideração no planejamento energético brasileiro no tocante a
aproveitamentos hidrelétricos no futuro.
O que fazer para evitar a savanização da Amazônia? Bem, o primeiro
ponto é que isso está ao alcance dos brasileiros. É preciso construir
políticas públicas que enfoquem a redução dos desmatamentos da Amazônia,
algo que vem ocorrendo nos últimos anos. Vamos dizer que estamos no
caminho certo uma vez que o desmatamento está diminuindo. Precisamos
continuar e reduzi-lo para próximo de zero. Agora, mesmo que consigamos
fazer tudo isso, se o aquecimento global continuar sem alterações, na
segunda metade deste século já vamos ter efeitos muito graves na
Amazônia. E isso pode levar a um risco de savanização da
região. Podemos zerar o desmatamento, mas isso será insuficiente
com a continuidade e aceleração do aquecimento global. Temos de
criar uma estratégia mundial de redução das emissões, não só no
Brasil. Este é o grande desafio. Se não reduzirmos as emissões
da queima de combustível fóssil, que é a principal forma de emissão de
gases de efeito estufa, pagaremos um preço muito alto mesmo se
reduzirmos os desmatamentos a zero.
Carlos Afonso Nobre
engenheiro, é Doutor em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of
Technology (MIT) e integra o Centro de Ciência do Sistema Terrestre do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
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